A história do laboratório farmacêutico brasileiro mais avançado na área de pesquisa
Revista EXAME - Poucos anos atrás, quando o químico José Antonio Martins voltou ao Brasil, depois de terminar seu pós-doutorado nos Estados Unidos, as chances de continuar morando na sua cidade natal -- a pequena Itapira, no interior paulista -- eram mínimas. Martins não via como poderia trabalhar num município com menos de 65 000 habitantes e pouquíssimas empresas. Um mês depois, Martins estava empregado lá mesmo, fazendo o que a maioria dos seus colegas de profissão considera o trabalho mais bacana da indústria farmacêutica: pesquisar novos remédios.
Martins, hoje com 35 anos, é funcionário do laboratório brasileiro Cristália. Com faturamento de 100 milhões de dólares por ano, a Cristália é reconhecida por pesquisadores, clientes, fornecedores e até concorrentes como a empresa brasileira mais avançada em pesquisa de princípios ativos, a alma de um medicamento. Dos 250 principais laboratórios farmacêuticos instalados no Brasil (incluindo as multinacionais), apenas 20 têm capacidade de fabricar esses princípios ativos, também chamados de moléculas. Nesse universo, a Cristália chama atenção porque, além de copiar moléculas com patentes vencidas, inventa outras novas.
Dos 11 princípios ativos patenteados pela empresa em seus 30 anos de existência, metade deles dedicada à pesquisa, dois tornaram-se anestésicos vendidos a hospitais. Um deles, o KetaminS+, obteve a patente americana na primeira semana de março. Um terceiro medicamento, para disfunção erétil, já passou pelos testes em animais e aguarda autorização para ser experimentado em seres humanos. A Cristália está em fase avançada no desenvolvimento de dois anti retrovirais, utilizados no tratamento de Aids, em parceria com o laboratório fluminense Farmanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz.
Isso não significa que a Cristália esteja no mesmo nível de inovação de empresas do primeiro time do setor farmacêutico, como a Pfizer, dona do Viagra, ou do Aventis, fabricante do Lantus, para diabetes. Remédios revolucionários como o Viagra e o Lantus chegam a consumir 12 anos de pesquisas e até 800 milhões de dólares antes de chegar às farmácias. É o triplo do tempo que a Embraer levou para desenvolver sua nova família de aviões de passageiros, que consumiu 700 milhões de dólares antes de chegar aos hangares de montagem.
Uma empresa como a Pfizer, que em 2003 desembolsou 5 bilhões de dólares em pesquisas, investe para descobrir mecanismos do corpo humano que possam indicar espaço para a criação de remédios totalmente inéditos. O desenvolvimento de novos produtos é uma etapa demorada e cara em qualquer indústria, e a farmacêutica está entre as que exigem mais capital. Para chegar a uma molécula nova uma empresa pesquisa cerca de 10 000 moléculas. As outras 9 999 são descartadas na fase dos testes de laboratório, nos testes em animais ou na última fase, quando experimentada em seres humanos.
A Cristália faz pesquisas sim, mas não a partir do zero. As anestesias da Cristália, por exemplo, foram originadas de moléculas já conhecidas, das quais os pesquisadores brasileiros conseguiram extrair pedaços que causavam efeitos colaterais. O remédio para disfunção erétil da Cristália terá o mesmo mecanismo de ação do Viagra, assim como fazem o Cialis, da Eli Lilly, e o Levitra, da GSK/Bayer.
Para sintetizar moléculas novas, a Cristália investe 7% de seu faturamento anual, apostando em gente qualificada. Só na divisão de pesquisa farmoquímica, com 65 funcionários, ela emprega 21 pesquisadores com mestrado, doutorado ou pós-doutorado. "Nessa área, não há outra companhia no Brasil com uma estrutura dessas", afirma o executivo da subsidiária local de uma farmacêutica americana que está entre as dez do setor que mais faturam no país.
As razões que levaram a Cristália a essa posição podem ser em grande parte creditadas ao empreendedorismo e à personalidade de seu principal líder, o médico Ogari Pacheco, presidente e um dos quatro fundadores da companhia. "A idéia de que brasileiro não é capaz de produzir conhecimento funciona para mim como desafio", diz Pacheco, de 65 anos. Ao nascer, em 1974, a Cristália era apenas uma fábrica de remédios que abastecia a clínica psiquiátrica que Pacheco e três colegas tinham montado ao sair das faculdades de medicina e odontologia da USP. "Éramos dependentes, pois as empresas estrangeiras só nos vendiam as matérias-primas que queriam", diz Pacheco. Foi aí que ele decidiu fabricar também princípios ativos, com base em cópias de suas concorrentes estrangeiras. Depois, em 1988, Pacheco criou o centro de pesquisa e desenvolvimento farmoquímico da Cristália.
Recentemente, dois produtos da Cristália -- o anestésico Sufentanil e o analgésico Droperidol -- foram incluídos na United States Pharmacopeia, o órgão que estabelece o padrão dos princípios ativos de remédios nos EUA. Isso significa que uma empresa canadense, por exemplo, que queira checar a qualidade do princípio ativo do Sufentanil de um de seus fornecedores, pelo padrão americano, receberá da farmacopéia americana o produto da Cristália como amostra para os testes. Nenhum outro laboratório brasileiro tem registros no organismo americano. "Chegar a esse nível não é para qualquer um", afirma José Correia da Silva, presidente do conselho da Associação Brasileira da Indústria Farmoquímica.
A Cristália é a segunda maior fornecedora de remédios para hospitais brasileiros, ficando atrás apenas da subsidiária local da suíça Roche. Atuar no segmento hospitalar, que representa cerca de 17% dos 5,5 bilhões de dólares que a indústria de medicamentos movimenta no país, foi estratégico. "Não teríamos bala para sustentar a força de vendas que o varejo exige", diz Pacheco. Só de quatro anos para cá é que a Cristália começou a vender para farmácias produtos como o antidepressivo Amytril e a pomada para herpes Aciclovir.
Do faturamento da Cristália, 85% vêm do ramo hospitalar. Sua presença é forte em anestésicos. Desses medicamentos, a Cristália é líder em vendas no país, com cerca de 30% de um mercado estimado em 120 milhões de dólares anuais. "Em todos os hospitais em que opero, seja no Incor, no Albert Einstein ou no Sírio Libanês, trabalho com medicamentos da Cristália", afirma o médico anestesista Ruy Vaz Gomide do Amaral, professor da Faculdade de Medicina da USP e responsável pela anestesia do primeiro transplante de coração realizado no Brasil. De acordo com Amaral, os hospitais compram da Cristália não só pela qualidade dos produtos, mas também porque o laboratório fabrica alguns medicamentos que nenhuma outra empresa sintetiza no Brasil. É o caso do Dantrolen, antes só produzido pela Procter & Gamble. O medicamento combate a hipertemia maligna, uma reação anestésica rara, porém letal. Até 1999, quando a Cristália chegou à síntese desse princípio ativo e começou a fabricar o remédio no Brasil, o medicamento custava aos hospitais cerca de 4 000 reais, contra os 2 500 cobrados pela Cristália.
A escolha desse caminho abriu as portas do mercado internacional -- hoje a Cristália exporta para hospitais de 27 países. A decisão de permanecer em nichos foi fundamental para que a Cristália sobrevivesse como pequena e depois se firmasse como empresa de médio porte num setor em que as multinacionais não param de se juntar, tornando-se cada vez mais poderosas. Para Pacheco, o caminho da inovação vem assegurando à Cristália crescimento e rentabilidade. Nos últimos dez anos, a receita da empresa cresceu a taxas de 15% a 25%. Em 2003, o aumento em relação a 2002 foi de 23% ante apenas 5,9% no setor. "Nessa indústria, o grau de inovação é diretamente proporcional à rentabilidade", afirma Nelson Libbos, consultor de estratégia e operação da indústria farmacêutica e ex-presidente da multinacional Aventis e do laboratório Farmasa.
A Cristália vai continuar inovando? Quando colocado diante dessa questão, Pacheco afirma vislumbrar apenas dois caminhos para a indústria farmacêutica. "Um é o dos genéricos, que proporciona volume e baixa rentabilidade. O outro é o da inovação, que é mais rentável, mas só aceita empresas de primeira divisão", diz Pacheco. "Meu desejo é que a Cristália continue na primeira divisão, mesmo que seja o último time da lista."
Fonte: Revista Exame
Video institucional