sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Brasil perde Zilda Arns, que ensinou a salvar crianças da desnutrição

Zilda Arns Neumann chegou para uma reunião de treinamento da Pastoral da Criança em São Paulo. Antes de começar a falar, botou no soro caseiro uma planta que já estava murcha. Na hora que terminou de conversar com os integrantes da comunidade carente que orientava, mostrou a flor aos presentes: ela recuperara o viço. Não raro, fazia isso também com crianças desidratadas: ministrava o soro caseiro nas que estavam sendo socorridas nos locais durante as conversas que mantinha com as mães. Até o momento final do treinamento, já era possível mostrar aos presentes o que o soro caseiro era capaz de fazer por uma criança.
A informação era a principal arma usada por Zilda para salvar crianças e mães na Pastoral da Criança, criada por ela em 1983, a pedido do irmão, o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Há dois dias, o terremoto que estremeceu o Haiti, deixando provável saldo de 100 mil mortos, dos quais pelo menos 14 militares brasileiros, também levou a vida da médica de 75 anos. Ela estava no país desde segunda-feira para encontro com religiosos locais. Fazia uma palestra numa igreja, quando ela ruiu. Sua morte foi lamentada por representantes de todos os segmentos da sociedade brasileira. Os governos federal e dos Estados de São Paulo e Paraná, entre outros, decretaram luto de três dias.
Emocionado com a perda daquela que foi a grande formuladora de um dos programas sociais com mais resultados no mundo, o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do População de Rua de São Paulo, lembrava, ontem, olhares e gestos de Zilda, aquela que viria a impor a Pastoral da Criança como uma obra sua, produto de sua dedicação, obstinação e apuro técnico - e, em especial, de uma enorme capacidade de comunicação com a população de menor renda. O êxito da campanha do soro caseiro, por exemplo, foi a soma da formação técnica e da capacidade de articulação da médica catarinense. "Ela explicava que o soro caseiro tinha capacidade de retenção no organismo 40% maior do que qualquer produto químico", diz Lancelotti. A campanha virou uma febre. Em todas as dioceses, foram distribuídas colheres de medidas para os ingredientes caseiros do soro - hoje um hábito incorporado no tratamento de crianças com desidratação.

Reconhecida como "Heroína Mundial da Saúde Pública" em 2002 pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), entidade da Organização Mundial da Saúde (OMS), a doutora Zilda morreu no Haiti trabalhando para expandir as conquistas atingidas no Brasil. Espontaneamente, buscava multiplicar bons exemplos. "As palavras convencem, o exemplo arrasta", resume a líder comunitária potiguar Marluzia Pessoa, para quem não é preciso ir além desse dito popular para entender o legado de Zilda Arns, nascida em 25 de agosto de 1934, em Forquilhinha, em Santa Catarina, viúva desde 1978, mãe de cinco filhos - em 2003, perdeu a filha Silvia num acidente de carro. Em 26 anos de trabalho na Pastoral, a médica, especializada em saúde pública e pediatria, liderou um movimento que envolvia cerca de 260 mil voluntários no Brasil e em 20 países. Foi quatro vezes indicada para o Prêmio Nobel da Paz.

Esse exército do bem acompanhou de perto e ofereceu assistência em saúde e educação - muitas vezes cumprindo um papel que cabe ao Estado - a mais de 1,4 milhão de famílias pobres, mães, gestantes e bebês, e 1,8 milhão de crianças menores de seis anos, contribuindo de forma determinante para o combate à mortalidade e desnutrição infantil e materna no país. "Lembro da dona Zilda orientando os agentes comunitários a fazer o trabalho com amor, compaixão e, sobretudo, promovendo a cidadania das pessoas. Vamos levar para toda a vida o estímulo de sermos transformadores da realidade, anjos da guarda das famílias pobres", recorda Marluzia, que coordena o atendimento de 22 mil crianças por 4,5 mil voluntários da Pastoral da Criança do Rio Grande do Norte. "Suas palavras se foram, mas o exemplo fica."
Em São Paulo, o padre Júlio Lancelotti foi escolhido por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, para ajudar Zilda Arns a implantar a Pastoral da Criança no Estado, projeto que havia concebido e implantado, com êxito, em Florestópolis, na Arquidiocese de Londrina. Ela chegou num fim de semana, dia em que Lancelotti rezaria uma missa na Favela Sinhá, na Zona Leste da capital. "Ela ficou ao meu lado no altar e, com os olhos atentos e fixos, tentava assimilar detalhes de cada grupo."

Quando foram andar pela favela, padre Júlio reparou que Zilda absorvia, nas conversas, a linguagem do grupo, e assim se fazia entender na comunidade. Foi a doutora Zilda, conta o padre, que ensinou a ele o que sabe sobre aleitamento materno. São coisas que todo mundo sabe, ou coisas que, não fosse por Zilda, as comunidades pobres não saberiam - e sem essas informações valorizariam menos o ato de dar de mamar a uma criança. "Você sabia que, quando uma criança faz movimentos em direção ao braço da mãe quando está mamando, está massageando os seus neurônios?", pergunta o padre. Foi Zilda quem disse. E foi Zilda quem definiu, na linguagem popular, o tanto que o leite materno é importante, ao explicar que leite de mãe é vivo, e leite de mamadeira é morto.

A doutora Zilda era a mesma, em qualquer lugar que estivesse. "Ela convivia com pessoas importantes, como ministros e chefes de Estado, mas era do mesmo jeito que na favela", conta o padre. E era assim: não tinha pressa; sabia ouvir e falava muito - fazia parte de seu lado missionário dar ao interlocutor uma enorme carga de informações; era criativa - "cada treino era diferente do outro"; muito prática - "não tinha rodeios com as coisas"; e era extremamente teimosa: ouvia para formar opinião mas, uma vez formada, era muito difícil demovê-la.
Tinha uma enorme capacidade organizativa - e deve-se a ela o grande crescimento da Pastoral da Criança. Foi um projeto que atraiu recursos de diferentes governos porque funciona com custos baixíssimos, e bem. Foi por essas qualidades que o programa foi adotado em outros países.
"Ela era incansável, montou um dos maiores trabalhos comunitários do mundo em saúde pública e buscava extrapolar as fronteiras do Brasil", acrescenta a analista de países da Opas, a brasileira Lucimar Coser Cannon. Falando de Washington, ela se comoveu ao lembrar que intermediou o primeiro financiamento do governo federal à Pastoral da Criança, em 1985. "Naquela época, era o antigo Inamps [Instituto Nacional de Assistência e Previdência Social] que cuidava da saúde. Viajei com a doutora Zilda para conhecer os projetos da Pastoral no Amazonas e voltei surpreendida com sua atenção às pessoas, sua tenacidade para conseguir recursos e mobilizar pessoas. Ela era eminentemente uma educadora em saúde e falava a língua das comunidades."
Padre Júlio, durante toda a entrevista, teve que se obrigar a referir-se a Zilda no verbo passado. "Ela é...", dizia, para em seguida retificar: "Ela era". E, conta, ela tem... tinha "veneração" pelo irmão "dom Paulo" - ela se referia a ele com o "dom" na frente - que, por sua vez, tinha enorme orgulho da obra da irmã mais nova. Às 18h, Júlio Lancelotti e os seus auxiliares da Pastoral da Criança foram à missa na Catedral da Sé que rezaria por ela, pelo Haiti e pelos outros brasileiros mortos no terremoto.

O corpo de Zilda já está com o Exército Brasileiro no Haiti. Segundo a coordenação da Pastoral, não há data confirmada para o seu traslado até o Brasil, nem para o velório e o sepultamento da médica. Em entrevista na tarde de ontem, em Curitiba, Nelson Arns, filho de Zilda, informou que o corpo da mãe será velado na sede da Pastoral da Criança.

Trabalho da Pastoral reúne 260 mil voluntários

É difícil separar a história de Zilda Arns Neumann da Pastoral da Criança, para a qual ela dedicou os últimos 26 anos de vida. Os números falam por ela: nas comunidades onde a instituição atua, a taxa de mortalidade para os menores de um ano de idade é de 11 para cada mil bebês nascidos vivos, enquanto a média nacional é de 19,3.
Zilda dizia que tinha como meta atingir os mais pobres entre os pobres com as ações da Pastoral e morreu enquanto cumpria essa missão no país mais miserável das Américas, onde o trabalho estava começando. Ontem, abalados com a notícia da morte da médica no Haiti, empregados da Pastoral atualizavam os dados da instituição, que possui 1,5 milhão de famílias cadastradas e faz o acompanhamento de 1,98 milhão de crianças de zero a seis anos de idade e de 108 mil gestantes em 42 mil comunidades carentes.
Durante 16 anos a Pastoral funcionou na casa de Zilda e só em 1999 ganhou novo endereço em Curitiba. O trabalho de combate à mortalidade infantil começou em Florestópolis, município no interior do Paraná cuja taxa de mortalidade infantil era muito alta, de 127 por mil nascidos vivos. Os resultados começaram a aparecer e a instituição espalhou-se pelo Brasil. Hoje chega a outros 20 países.

"Não é assistencialista, mas de promoção humana, de fortalecimento das famílias", disse a médica sobre o trabalho, ao Valor, em 2006, quando buscava parceiros privados para os projetos. O corpo a corpo nas áreas carentes é feito por 260 mil voluntários treinados para transferir conhecimentos de saúde e alimentação. O modo comunitário, preventivo e de uso da solidariedade barateia os custos. Em 2009, o gasto mensal por cada criança atendida foi de R$ 1,69.
O balanço da Pastoral da Criança mostra que, no ano fiscal encerrado em setembro, as receitas brutas somaram R$ 44,35 milhões e foram 20,8% maiores que no exercício anterior, mesmo com a crise econômica. Foram R$ 9 milhões provenientes de doações, o que representa queda de 23,3% em relação a 2008. No caso de entidades públicas, os recursos aumentaram 42% e chegaram a R$ 34,6 milhões.
O maior aporte foi feito pelo Ministério da Saúde (R$ 33,9 milhões), seguido pelo HSBC (R$ 3 milhões), pessoas que contribuem na conta de energia elétrica (R$ 2,3 milhões), Criança Esperança (R$ 1,65 milhão) e outras empresas. Zilda esforçava-se para engordar o caixa e agregar parceiros, mas afirmava que fechar as contas era "uma obra divina, não humana".
No balanço, a instituição divulga também o que chama de recursos não monetários: a participação voluntária dos cidadãos nos programas. Para cada R$ 1 em espécie, o equivalente a R$ 3 são doados assim, na forma de trabalho.
Em 2008 ela deixou de ser coordenadora nacional da Pastoral, cargo agora ocupado pela freira Vera Lúcia Altoé, que está em férias. Freira da Congregação das Irmãs da Imaculada Conceição de Castres, Vera Lúcia foi indicada por Dom Algo Di Cillo Paggoto, arcebispo da Paraíba e presidente do conselho diretor da Pastoral. Ela tem 51 anos, é capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, é formada em pedagogia e pós-graduada em alfabetização e em ensino religioso. Começou seu trabalho na Pastoral da Criança quando foi morar na favela do Jardim Vitória, em Cuiabá (MT), em 1997.
Quando deixou a coordenação brasileira da Pastoral da Criança, Zilda Arns virou coordenadora internacional da instituição e passou a cuidar da Pastoral da Pessoa Idosa, criada em 2004. Atualmente, 129 mil idosos são acompanhados todos os meses por 14 mil voluntários. Na terça-feira, em discurso no Haiti, Zilda fez um balanço de seu trabalho. "Tudo isso nos mostra como a sociedade organizada pode ser protagonista de sua transformação", segundo texto distribuído por sua assessoria.


Fonte: Valor Econômico, notícia também publicada nos veículos Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Portal G1
Notícia publicada em: 14/01/2010